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Leite - 21/03/2011 - IN51


Informações atualizadas

A melhoria da qualidade do leite no atual contexto de mercado

Nesse último mês, ganhou força a discussão em torno da efetivação dos novos limites determinados pela Instrução Normativa 51, que regula as normas de qualidade do leite no Brasil.

Há basicamente, duas correntes básicas opinando sobre o tema. A primeira corrente baseia-se em geral nos seguintes argumentos: a melhoria da qualidade é uma necessidade; a não-implantação irá desacreditar a normativa e colocar em risco o trabalho que vem sendo feito desde 2002, quando a primeira versão foi finalizada; a não-implantação penalizará aqueles que investiram e se adaptaram nesses anos todos, favorecendo aqueles que "apostaram" contra a qualidade, ou que não tiveram condições de se adaptar; como em qualquer atividade, os que não se adaptarem deverão procurar outras atividades: porque o leite deve acomodar esses produtores sem condições de produzir de acordo com o que o futuro exigirá? Porque todos precisam produzir leite, independentemente da vocação e do alinhamento às necessidades do mercado atual e futuro?, dirão.

Na trincheira oposta, estão aqueles que argumentam que a maior parte dos produtores não teve e ainda não tem condições de se adequar; faltam recursos, falta assistência técnica, falta capacitação; nesses anos todos, muito pouco ou quase nada foi feito em relação a isso, lembrando que o antigo PNMQL, que norteava a IN 51, incluía fortes investimentos em capacitação, que não ocorreram. Assim, jogar sobre o produtor essa responsabilidade é no mínimo injusto, isso sem contar o fato de não estarmos na Europa ou na Nova Zelândia, onde a rede elétrica sempre funciona, o clima é mais ameno, as estradas são quase todas asfaltadas ou cascalhadas e há tudo o mais que faz com que seja factível ter um leite com padrão europeu ou neozelandês.

À parte os argumentos técnicos que norteiam ambas as posições, há ainda argumentos ideológicos: na primeira corrente, concentram-se principalmente os adeptos do livre mercado, do mérito individual como determinador do sucesso, do leite como atividade econômica como qualquer outra atividade em um sistema capitalista, do processo de concentração que caracteriza outros segmentos e que certamente caracterizará o leite também, trazendo eficiência. Na segunda, está o papel social do leite, que emprega milhões de pessoas; está o produtor familiar, de pequeno porte, desassistido e que será excluído da atividade, como já ocorreu em outros países que não devemos copiar.

Não é objetivo do artigo discutir quem está com a razão, até porque há bons argumentos em ambos os grupos: não há dúvida que é necessário melhorar a qualidade - não há argumento que contra o fato de que o mercado consumidor se tornará cada vez mais exigente e o ambiente de negócios ficará cada vez mais hostil para a má qualidade, ainda que estejamos no início desse processo. Muito menos para o fato de que produzimos alimentos, sendo dever (moral) de quem o faz colocar no mercado produtos de qualidade, que possam ser consumidos sem riscos pela população, e com os teores adequados de nutrientes e com as características orgaolépticas especificadas.

Por outro lado, parece claro que, a reboco da lei, muito pouco foi feito para que a qualidade evoluísse como previsto. A qualidade, de certa forma, é consequência de educação, do ambiente de negócios e da infra-estrutura melhorados continuamente, e não apenas do que determina a legislação.

O ponto em questão aqui é que a qualidade do leite é assunto que vai muito além da IN 51, daí a complexidade do tema e o espaço para diversas opiniões consistentes, ainda que opostas. Como se diz em acidentes de avião, raramente há somente um único aspecto envolvido. É precisamente o caso da qualidade do leite.

Gostaria de iniciar essa abordagem dizendo que, particularmente, não acredito que a lei num caso complexo como esse irá resolver, até porque, até onde eu sei, a IN 51 não é uma lei: a lei é o RIISPOA, datado ainda de 1952 e que não foi atualizado para a IN 51 (a última atualização foi de 1997). Dessa forma, a rigor a IN 51 não tem o poder de lei. Talvez por isso ou pelo fato de não ser viável hoje a sua aplicabilidade plena, a ferro e fogo, pois criaria um colapso no abastecimento, dada a porcentagem de leite fora das especificações, o MAPA, até onde eu sei, nunca autuou nenhum produtor por não se adequar aos limites preconizados pela IN 51.

De outra forma, acredito que ser oportuna a aplicação da IN 51 como função "educadora" e como sinalizadora do caminho a seguir, em que a melhoria da qualidade é um caminho sem volta. É uma referência, um indicativo de onde queremos chegar, ainda que hoje estejamos longe disso, quando se analisa o todo.

Ainda que a norma não seja lei e a punição seja pouco provável, vale a pena aproveitar a oportunidade para discutir as razões pelas quais a qualidade do leite demora tanto a deslanchar no Brasil. A qualidade do leite não tem evoluído nos últimos anos, como atestam os dados dos laboratórios oficiais. Não é de se chamar a atenção esse fato, considerando a implantação da própria IN 51, o número de ordenhadeiras mecânicas e tanques de expansão vendidos nos últimos anos, o maior acesso à informação, com grande número de cursos, eventos, revistas, sites, televisão e a existência de programas oficiais e não-oficiais de assistência técnica? Com todo esse aparato, e com o fato de que o país mudou muito nos últimos anos, porque a qualidade do leite, esse item sobre o qual todos concordam (que é preciso melhorar) ficou, ao menos segundo os dados oficiais, parada no tempo?

Assim como acredito que a "lei" por si só não resolve, entendo que a valorização da qualidade (e a punição da má qualidade) pela via de mercado, isto é, por programas de pagamento por qualidade, aliados à disponibilização de instrumentos que ajudem o produtor a evoluir, tem grande importância nesse processo.

Porém, isso só será efetivo caso amplamente adotado pela cadeia. E porque, nessas alturas do campeonato, a qualidade ainda não é valorizada como deveria?
Sherlock Holmes, o detetive inglês criado por Conan Doyle, dizia que, na investigação de um crime, tirando as hipóteses mais absurdas, provavelmente analisando-se os motivos mais óbvios a solução seria encontrada. Talvez possamos utilizar essa técnica para tentar responder a essa questão.

Se analisasse a situação dos programas de pagamento por qualidade, Holmes provavelmente concluiria que, tirando a improvável hipótese de um erro estratégico grosseiro na política de aquisição do principal componente de custos de um laticínio por parte de grande número de empresas, provavelmente estamos assim pelo fato de que, para a maioria das empresas, tem sido a estratégia mais interessante, ao menos até agora.

O primeiro aspecto relevante é que o mercado brasileiro tem crescido, e muito, nos últimos anos, fruto da inserção de novos consumidores que ainda buscam incorporar em sua dieta um pedaço de queijo ou, quem sabe, um copo de iogurte a cada dia. Relacionado a esse aspecto há o fato de que, na briga pelo mercado e para atender esse forte crescimento, é preciso ter suprimento garantido de leite. Esses aspectos, aliados à ociosidade da maior parte das fábricas, não criam uma conjuntura muito favorável para a implantação de programas de pagamento oor qualidade, em especial aqueles que criem um diferencial muito significativo entre leite de boa e de má qualidade. A empresa que optar por bonificar a qualidade (e punir a falta dela) corre o risco de perder leite que, via de regra encontra destino, especialmente nos momentos de escassez - e o consumo tem crescido mais do que a produção nos últimos anos.

Ainda, é preciso lembrar que mais de 40% do leite industrializado no Brasil é consumido na forma líquida, em que o aumento do teor de sólidos não traz uma contrapartida em rendimento industrial. Mais ainda: 70% desses 40% sofrem forte tratamento térmico, tornando menos relevantes aspectos como a vida de prateleira, sabor, etc., em comparação ao leite refrigerado, onde pequenas variações de qualidade (seja do produto, seja da cadeia de frio) geram grandes diferenças lá na ponta. Por fim, lembremos que não temos o hábito de consumidor leite puro, de forma de variações de sabor e aparência são mascaradas em comparação ao consumo puro, mais típico da Europa, América do Norte e afins.

Mesmo no caso de derivados cujo rendimento industrial é grandemente afetado pelo teor de sólidos, como leite em pó e principalmente queijos, a heterogeneidade da cadeia no país, as diferenças de custos da matéria-prima nas várias regiões e a dificuldade do consumidor compreender as diferenças de qualidade criam eventualmente condições em que pode ser mais barato captar leite em bacias menos desenvolvidas, com rebanhos não especializados, porém a custo suficientemente mais baixo, a ponto de compensar as deficiências em qualidade.

Todos esses aspectos fazem com que o pagamento por qualidade, se não implantado "top-down" por um grupo consistentes de empresas líderes, torna-se item sensível para aquela que, isoladamente, optar por esta estratégia. Afinal, em jogo está a principal variável: volume de leite para crescer em um mercado em crescimento. Holmes concluiria, mais uma vez, que não é por acaso que as bonificações por volume sejam mais prevalentes e de maior monta do que as de qualidade: é item mais sensivel, seja pelas questões logísticas, seja por estimular o aumento da produção, itens-chave para as empresas.

É importante reconhecer, no entanto, que esse quadro em que a estratégia de curto prazo prazo prevalece não é a melhor estratégia para o setor no médio e longo prazo, por várias razões.

Primeiro, ainda que o consumidor não tenha um conhecimento exato do que é qualidade, como muitos de nós gostaríamos, ele a valoriza. Todos os episódios envolvendo problemas de qualidade tiveram repercussões e afetaram em maior ou menor gau as empresas envolvidas. O caso de melamina na China, certamente o mais grave dos últimos anos, gerou conseqüências desastrosas para a indústria chinesa, que perdeu grande parte do ímpeto de crescimento. Aliás, o mercado internacional só está nos níveis atuais porque o chinês perdeu a confiança no produto local, sendo necessário importar 400.000 toneladas anuais, ainda que mais caras do que a produção chinesa. Os episódios de fraude há alguns anos envolvendo duas empresas isoladas afetaram o mercado naquele momento, tendo grande destaque na mídia.

Em outras palavras, o consumidor da China, do Brasil e de vários outros países emergentes, onde a população tem cada vez mais acesso a produtos, a alternativas de consumo e a informação, valoriza sim a qualidade e, mais ainda, penaliza a não-qualidade quando ocorrem episódios dessa natureza. E esse comportamento se intensificará. Desta forma, analisando o setor como um todo o fato de que é preciso construírmos um mercado que tenha crescimento sustentável (lembremos novamente da melamina na China), é fundamental que façamos a lição de casa, mesmo que ainda não sejamos tão cobrados pelos professores. Sempre pode haver uma prova-surpresa
Sob o aspecto de sólidos do leite, tudo indica que a qualidade também precisará ser valorizada. Os produtos que mais devem verificar crescimento no consumo são os queijos e iogurtes, para os quais rendimento industrial é importante. O crescimento do mercado de leite fluido será menor, tanto pelo consumo per capita já ser mais alto, como pelo fato de que a taxa de natalidade está caindo - e é sabido que nas casas com crianças o consumo de fluido é maior. Ademais, a maior parte dos grandes laticínios produz hoje uma variedade de produtos e não apenas leite fluido. Falando em exportação, também tudo empurra para os sólidos, afinal o rendimento industrial é fundamental para a competitividade no mercado industrial. Segundo me foi informado por uma indústria, cada 0,1% a mais ou a menos no teor de sólidos impactaria em R$ 2 milhões/ano a receita desta empresa.

Tudo isso nos sugere que o melhor para as empresas nesse momento não é necessariamente o melhor para o setor no futuro. Mas como, na prática, consegue-se tirar parte do foco do presente e colocá-lo no futuro?

Todas estas questões remetem a ações coletivas, entre empresas e envolvendo inclusive a participação governamental. No que se refere à assistência técnica, é preciso reconhecer que, por inúmeras razões, o modelo até então em prática não funcionou como deveria, talvez em parte pela falta de recursos. Será que não há espaço para novos arranjos, em que, por exemplo, cooperativas e laticínios pudessem captar os recursos, em parcerias público-privadas visando desenvolver seus fornecedores (inclusive com a participação de técnicos da extensão oficial, como no programa Balde Cheio, que têm se mostrado promissor), prestando contas posteriormente mediante os resultados obtidos?

Em relação ao pagamento por qualidade, acredito que um caminho possível seria a organização inicialmente das principais empresas de laticínios do país, envolvendo um código de conduta que incluiria um plano comum para melhoria da qualidade do leite visando 100% de conformidade em relação a IN 51 em prazos específicos, talvez acompanhada de um selo de qualidade e investimentos em marketing e educação do consumidor. Se uma quantidade significativa do leite estiver sob compromissos como esse, o mercado tende a mudar. Aconteceu com o café, com o Selo de Pureza, criando um ambiente de negócios mais favorável. Em vários setores, a organização do setor privado tem sido mais importante do que a interferência governamental quando se fala em mudança de padrões. No leite, historicamente, colocamos sempre a responsabilidade de mudança no governo. Mas uma andorinha só, ou duas, não fazem verão. Já 8 ou 10, das grandes, começam a ter uma chance.

importância da IN-51 está também em ser um motivador

Os questionamentos feitos pelos usuários do MilkPoint sobre a aplicação ou não das novas normas da IN-51 sobre a qualidade do leite são muito interessantes. Eles me levaram a fazer uma reflexão mais profunda sobre o problema e eu gostaria de compartilhá-la com os leitores.

Todos, de uma maneira geral, consideram que deve haver melhoria na qualidade do leite. Que isto será bom para a cadeia em geral. O que se discute é a forma de melhorar a qualidade do leite.

A IN-51 foi promulgada em 2002. Já se vão oito anos. Os dados da Clínica do Leite mostram que não houve melhoria na média da qualidade do leite. É claro que o leite de algumas empresas melhorou consideravelmente, mas somente no quesito contagem bacteriana. A CCS e os componentes do leite (gordura, proteína, sólidos totais) continuam exatamente os mesmos. Mais interessante, ainda, é analisarmos os resultados de CCS dos diferentes laboratórios. Os valores são muito próximos, da ordem de 500 mil céls/mL, mostrando que independentemente da região, raça, manejo, etc. a ocorrência de mastite no país é semelhante. Isto indica que temos um equilíbrio biológico na infecção das vacas e que este equilíbrio leva a uma CCS do tanque da ordem de 500 mil cels/mL.

Para alterarmos este equilíbrio será necessário a adoção de técnicas de manejo trabalhosas, como higiene de ordenha, regulagem de equipamentos de ordenha, uso de antibióticos na secagem, descarte de vacas a partir de exames microbiológicos, entre outras. A execução destas técnicas de manejo exige esforço humano, conhecimento e recursos financeiros. Para tanto, em primeiro lugar, os produtores precisam estar motivados para executá-las. Coisa que parece que não estão até então.

A pergunta que se faz é porque não estão motivados?

Não conheço nenhum trabalho científico feito no Brasil que mostre claramente as razões da falta de motivação. De posse de informações da literatura internacional vou fazer algumas considerações.

As informações da literatura mostram que o fator humano nas diferenças de CCS entre tanques é da ordem de 45%. Ou seja, 45% da variação de CCS entre tanques são devidos ao fator humano. Como fator humano entende-se a intenção de mudar, o conhecimento de técnicas de manejo para mudar e as condições para mudar. A motivação é função do conhecimento dos riscos da alta CCS (perda de leite, custo da mastite, perda de mercado - valores de CCS acima do da IN-51 e a sensação de que é possível resolver o problema).

Como ninguém sofreu, até então, o risco de sair do mercado devido a infringir a IN-51, de uma maneira geral, em minha opinião, nossos produtores até acreditam que a mastite é um problema, mas, realmente somente se preocupam com ela quando a mastite clínica, em suas propriedades, ultrapassa um determinado nível que eles consideram razoável. Como poucos possuem dados da ocorrência de mastite clínica, esta sensação de não conformidade ocorre somente quando uma vaca que é especial para ele perde o teto ou morre devido à mastite. Além disso, como a prevalência da mastite clínica não tem alta correlação com a CCS do tanque, ele não é incentivado a reduzir a CCS. Esta seria, para mim, a principal razão da não melhoria da qualidade do leite desde a implantação da IN-51- falta de motivação para mudar.

É certo, no entanto, que, além de motivação, os produtores precisariam ter conhecimento do que fazer para mudar e condições para adotar estas alterações.

Daí a importância da IN-51. Ela será um motivador para que o produtor trabalhe para reduzir a CCS, desde que, de fato, haja sanções às não conformidades. No entanto, para que haja melhoria na qualidade do leite, haverá necessidade de informar ao produtor o que deve ser feito e dar condições para que ele execute as alterações. Isto tudo é um trabalho conjunto que deve envolver a todos - produtores, indústria, consultores - principalmente veterinários, órgãos de fomento, universidades, governo e instituições de classe como a CNA. O produtor, isoladamente não conseguirá reduzir a CCS do seu rebanho.

Postado: Leomar Martinelli
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